Quando a tecnologia ultrapassa o limite da ética: um olhar psicanalítico sobre a violação da imagem e da intimidade

 O caso ocorrido em Indaiatuba (SP), em que imagens de adolescentes foram manipuladas por inteligência artificial para criar falsas cenas de nudez, traz à tona uma questão que ultrapassa o campo policial. Ele revela uma ferida simbólica da nossa era digital: a fragilidade do sujeito diante do olhar do outro e a perda da noção de limite em tempos de exposição constante.



Na psicanálise, o olhar é mais do que ver, é um modo de ser visto, de existir para o outro. Desde o nascimento, o sujeito se constitui a partir desse olhar que o reconhece e o nomeia. Quando esse olhar é distorcido, invadido ou transformado em objeto de consumo, o sujeito sofre uma ruptura na sua imagem simbólica. O que foi feito com essas adolescentes não é apenas uma falsificação de fotos, mas uma violação daquilo que há de mais íntimo: a possibilidade de ser sujeito e não objeto do desejo do outro.

A inteligência artificial, nesse contexto, atua como instrumento que potencializa a perversão do olhar. Ela transforma a imagem humana em matéria manipulável, apagando a fronteira entre o real e o falso. Na cultura digital, essa fronteira já é tênue, mas o uso da IA em situações como essa evidencia uma tentativa inconsciente de dominar o outro, de reduzir o sujeito à coisa, ao corpo sem palavra, à imagem que pode ser moldada.

Do ponto de vista clínico, o impacto emocional nas vítimas é profundo. A experiência de ter sua imagem violada provoca vergonha, angústia e confusão. A jovem não sabe mais o que é real ou o que foi fabricado. Sua imagem, que deveria ser reflexo da própria identidade, passa a circular em espaços onde ela não tem controle, o que pode gerar sentimentos de desamparo e perda de si.

A oscilação entre alegria e raiva, relatada por uma das mães, é compreensível à luz da psicanálise. O trauma não se dá apenas no momento do acontecimento, mas se prolonga no tempo, reaparecendo em diferentes afetos e comportamentos. Há uma tentativa inconsciente de elaborar o que foi vivido, mas sem ainda encontrar um lugar simbólico para o ocorrido.

O episódio também revela algo sobre a sociedade contemporânea: a dificuldade coletiva de lidar com o limite, com o respeito à alteridade e com o desejo de ver tudo, de expor tudo. Vivemos numa cultura de imagens onde o olhar é constantemente excitado, mas raramente responsabilizado. Quando a tecnologia permite transformar qualquer rosto em objeto de fantasia, o sujeito perde sua singularidade e se torna refém da pulsão escópica, o prazer de olhar e ser olhado, sem o filtro ético do humano.

Como analistas e educadores, é urgente promover espaços de escuta e reflexão sobre o uso da tecnologia e o valor simbólico da imagem. É preciso ajudar as novas gerações a compreenderem que a exposição virtual tem efeitos reais na psique, e que o respeito ao outro começa na capacidade de reconhecê-lo como sujeito, não como objeto do próprio desejo.

Mais do que condenar ou escandalizar, esse caso nos convoca a pensar o que estamos fazendo com o poder que a tecnologia nos dá. A psicanálise nos lembra que o humano só se sustenta na presença do limite, e que sem ele, o olhar, antes vínculo, se transforma em violência.

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