O tapa no bebê e o grito do inconsciente: um olhar psicanalítico sobre um ato absurdo


Na noite de quinta-feira (05), em Belo Horizonte, um homem de 36 anos foi preso após agredir um bebê de apenas quatro meses. O motivo? Ele acreditava que a criança era um boneco reborn e acusou os pais de furarem a fila de um trailer de lanches. Mesmo após ser informado de que se tratava de um bebê real, ele insistiu, e acabou dando um tapa na cabeça da criança. Um ato absurdo, incompreensível à primeira vista. Mas o que pode estar por trás disso?

A psicanálise nos ajuda a enxergar além do ato em si. Não para justificar, mas para tentar compreender as camadas inconscientes que se manifestam em ações tão irracionais e violentas.

A projeção: quando o outro se torna o espelho de nossos fantasmas

Ao acusar os pais de usarem um boneco para burlar regras sociais, o agressor projeta neles uma sensação interna de injustiça, engano ou até humilhação. A psicanálise chama isso de “projeção”: um mecanismo de defesa no qual aspectos que a pessoa não reconhece em si mesma são colocados no outro.

Talvez aquele homem estivesse lidando com frustrações, ressentimentos ou uma sensação de invisibilidade que encontrou, naquele casal e naquela criança, um alvo simbólico. A criança, símbolo da fragilidade e da vida em formação, acaba se tornando depósito de uma raiva que não tem nome, mas que busca um corpo onde possa se manifestar.

O real que retorna com fúria

Lacan dizia que o real é aquilo que escapa à simbolização. É o que retorna quando o simbólico (a linguagem, a lei, os códigos sociais) falha. Neste caso, o real parece ter irrompido: a figura do bebê como algo inaceitável, irreal, perturbador. A negação da realidade da criança é, em si, um sinal psíquico importante. Algo no homem não conseguia reconhecer ali um ser humano, como se, para ele, aquilo fosse de fato um boneco, uma ameaça simbólica, um engano.

Esse tipo de dissociação pode estar ligado a traumas passados, desorganizações psíquicas ou mesmo estados de negação frente ao que é mais humano: a fragilidade e a dependência.

O narcisismo ferido e a intolerância ao outro

A fila, o tempo de espera, a frustração de ver alguém “passar na frente”, tudo isso pode ter tocado em feridas narcisistas profundas. O narcisismo ferido, quando não elaborado, costuma gerar comportamentos violentos, como se o sujeito dissesse: “Não aceito que o outro exista com suas necessidades e direitos”. O bebê, nesse caso, é tratado não como um sujeito, mas como um objeto um obstáculo à satisfação imediata.

É assim que o desamparo psíquico, não elaborado, se transforma em fúria contra o outro.

O bebê como símbolo do real que incomoda

A presença de uma criança pequena é, muitas vezes, uma lembrança viva do início da vida, da dependência absoluta e da necessidade de cuidado. Para alguns adultos emocionalmente feridos, essa lembrança é insuportável. O bebê evoca sentimentos profundos de impotência e vulnerabilidade que muitos negam em si mesmos. E, ao negar, atacam.

A importância de reconhecer e tratar o sofrimento psíquico

O homem que cometeu essa agressão afirmou ter bebido, mas segundo a polícia, estava sóbrio. A embriaguez talvez fosse usada como desculpa para um ato que ele mesmo não compreende. Mas o que esse episódio grita é algo mais profundo: há muitos sujeitos adoecidos emocionalmente, agindo no mundo sem consciência do que carregam dentro de si.

A sociedade precisa aprender a reconhecer sinais de sofrimento psíquico antes que eles se transformem em violência. A psicanálise, a psicoterapia e outras formas de escuta profunda são ferramentas potentes para isso.

Essa não é apenas a história de um tapa em um bebê. É o retrato de uma sociedade que muitas vezes falha em acolher o sofrimento psíquico, que silencia os afetos até que eles explodam da pior forma. Precisamos urgentemente de mais escuta, mais compreensão e mais investimento em saúde mental.

E sobretudo, precisamos lembrar: um bebê nunca deveria ser confundido com um boneco. Nem tratado como tal.

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