A manchete é dura, impactante: uma recepcionista, endividada em R$ 100 mil por causa de apostas no “Jogo do Tigrinho”, recorre a cinco agiotas em uma tentativa desesperada de saldar a dívida. Mais do que um caso isolado, essa situação é um retrato gritante de um sofrimento psíquico que escapa às estatísticas econômicas. Por trás de dívidas e aplicativos de aposta, há um sujeito em sofrimento, um sujeito em desamparo.
Do ponto de vista psicanalítico, precisamos ir além da crítica moral ou da explicação racional sobre educação financeira. É necessário escutar o sujeito que aposta. O que o leva a repetir a mesma ação esperando um resultado diferente? O que deseja aquele que aposta compulsivamente, que insiste em promessas de dinheiro fácil, mesmo diante de perdas avassaladoras?
O jogo como tentativa de preencher o vazio
Para Freud, a compulsão à repetição está ligada ao inconsciente e ao retorno de experiências traumáticas não elaboradas. O jogo, nesse contexto, pode ser uma tentativa inconsciente de lidar com o vazio, com a angústia, com um sentimento de desamparo primordial.
Quando alguém se entrega ao jogo compulsivamente, muitas vezes está tentando escapar de algo que o habita: a frustração, a solidão, o sentimento de inadequação ou mesmo a busca de reconhecimento. O ganho prometido pelo jogo aparece como uma solução mágica, um alívio temporário para um mal-estar existencial.
Promessas de salvação e a sedução do imediato
O “Jogo do Tigrinho” e outras plataformas semelhantes vendem a fantasia de ascensão instantânea: "Ganhe dinheiro em minutos", "Mude sua vida agora". Essas frases tocam um desejo profundo de muitos sujeitos marcados por experiências de escassez, não apenas material, mas afetiva, simbólica, subjetiva.
Nesse cenário, a ilusão de controle, característica comum em jogadores compulsivos, revela um desejo de domínio sobre a própria vida, frequentemente vivenciada como caótica ou sem sentido. A aposta passa a ser um ritual, uma tentativa de reencontrar valor pessoal, sucesso e autoestima, ainda que ilusoriamente.
O encontro com o real: o colapso
A realidade, no entanto, cobra seu preço. Dívidas crescentes, humilhações, pressões e ameaças de agiotas. O sujeito se vê encurralado por uma engrenagem que, antes, parecia promissora. A promessa de prazer se converte em dor.
Neste ponto, emerge o choro, como no relato da recepcionista: “Choro o tempo todo”. Aqui está o ponto crucial do sofrimento psíquico: a queda da fantasia, o encontro com o real do desamparo. Um grito que precisa ser escutado não com julgamento, mas com escuta clínica.
A falta de suporte e a cultura da imediatidade
Vivemos numa cultura que exalta o prazer instantâneo, o sucesso sem esforço, o consumo como forma de validação. Em um contexto onde o sujeito não encontra espaços para simbolizar suas dores, onde a escuta é rara e a solidão é crescente, o jogo aparece como uma promessa de alívio, uma promessa que, como toda ilusão, colapsa.
A ausência de políticas públicas de prevenção, de suporte psicológico acessível e de campanhas de conscientização sobre os riscos psíquicos do jogo agrava ainda mais esse cenário. A clínica psicanalítica pode e deve se debruçar sobre essas questões, acolhendo o sujeito e ajudando-o a construir novas formas de lidar com sua dor.
O jogo como sintoma de uma sociedade em colapso
A história da recepcionista é mais do que uma notícia trágica, é um grito de socorro. É um sintoma de uma sociedade adoecida que oferece soluções mágicas para dores reais. É preciso escutar, acolher, e sobretudo, trabalhar o sentido desse sofrimento.
Como psicanalistas, nosso papel é lembrar que por trás de cada jogada compulsiva existe um sujeito dividido, desejante, em busca de uma saída. Que nossa escuta possa ser essa fresta por onde o sujeito reencontra a si mesmo não em cifras, mas em palavras.