“Eu não cresci no aplauso”: um olhar psicanalítico sobre a força que nasce do desamparo

“Eu não cresci no aplauso.

Eu cresci no corte, na ausência e no desacreditar,

e é por isso que, agora, ninguém me para.”


Essa frase, carregada de dor e potência, revela muito mais do que uma trajetória de superação. Ela escancara o impacto do ambiente emocional em que nos constituímos, e como a ausência de acolhimento pode, paradoxalmente, tornar-se fonte de força. Mas o que, exatamente, está em jogo quando alguém afirma ter crescido "no corte, na ausência e no desacreditar"? A psicanálise pode nos ajudar a compreender.




O aplauso que não veio: o lugar do outro na constituição do eu

Na infância, somos profundamente dependentes do olhar do outro – geralmente, os pais ou cuidadores. A forma como esse outro nos vê, nos escuta e nos valida molda as bases da nossa identidade. O “aplauso” aqui não é literal, mas simbólico: representa o reconhecimento, o afeto, o “você importa”, essencial para o desenvolvimento psíquico.

Quando esse aplauso não vem, instala-se o desamparo primário – conceito essencial na psicanálise freudiana. A criança que não é acolhida aprende cedo a sobreviver sozinha, a “funcionar” mesmo sem a sustentação emocional do outro. O que poderia ser devastador, às vezes, transforma-se em um mecanismo de defesa que leva à autonomia precoce, mas também pode gerar cicatrizes profundas.


Crescer no corte: a experiência da castração simbólica

O “corte” mencionado na frase pode ser compreendido como uma metáfora da castração simbólica não no sentido físico, mas no da introdução da falta, do limite, da frustração. A criança que cresce no corte lida com a sensação de que algo lhe foi negado: o afeto, o incentivo, a crença no seu potencial.

Essa ausência pode produzir sentimentos de rejeição, insegurança e uma busca incessante por reconhecimento. Porém, ao mesmo tempo, também pode gerar um sujeito resiliente, que aprendeu a não depender do olhar alheio para seguir em frente. O sujeito que, por não ter sido "aplaudido", tornou-se o seu próprio aplauso.


O desacreditar: quando o outro não aposta em nós

Crescer cercado de pessoas que não acreditam em nosso valor ou capacidade pode ser devastador – especialmente na infância, fase em que ainda estamos construindo a imagem de nós mesmos. Quando o outro nos desacredita, corremos o risco de introjetar essa descrença e nos tornarmos os nossos piores sabotadores.

Mas, há quem reaja de forma diferente: usa o desacreditar como combustível. A raiva de não ter sido visto pode ser transformada em desejo, em ação, em pulsão de vida. Como diz Lacan, “o desejo é o desejo do Outro”  e, se o Outro não nos deseja, resta-nos desejar por nós mesmos.


“Ninguém me para”: a força que emerge do trauma

O sujeito que afirma “ninguém me para” está dizendo que, apesar de tudo ou por causa de tudo tornou-se alguém que não depende mais do olhar externo. Isso pode ser sinal de uma superação parcial do trauma: uma reorganização psíquica onde o eu encontra um ponto de apoio em si mesmo.

Mas é preciso cuidado. Nem sempre essa força é saudável. Às vezes, é uma defesa endurecida, um modo de seguir sem sentir. O risco é que, ao negar a dor, nega-se também a possibilidade de elaborá-la. A verdadeira força não está em fingir que não dói, mas em integrar essa dor à própria história, ressignificando a.


Do desamparo à potência

A frase que abre este artigo é, ao mesmo tempo, denúncia e declaração de autonomia. É o retrato de alguém que transformou a ausência em impulso, o corte em clareza, o desacreditar em motivação.

Do ponto de vista psicanalítico, trata-se de um percurso de subjetivação construído a partir da falta um sujeito que não cresceu no espelho do outro, mas na dureza da sobrevivência psíquica. E que agora caminha por si, talvez ainda ferido, mas decidido.

A ausência de aplauso pode nos marcar. Mas não precisa nos definir. Ao elaborar o desamparo, ao olhar para ele com coragem, podemos descobrir uma força que não sabíamos que tínhamos.

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