Racismo nos estádios: o que a psicanálise vê no caso Avaí x Remo


A cena que circulou nas redes nos últimos dias mostrando uma torcedora do Avaí ofendendo a torcida do Remo é mais do que um problema esportivo. É um espelho incômodo da nossa subjetividade social, um retrato de como cada sujeito pode carregar, sem perceber, conteúdos internos que emergem quando o ambiente dispara seus gatilhos. O estádio, com sua vibração e rivalidade, funciona como um grande laboratório emocional onde nossas defesas se fragilizam e deixamos escapar aquilo que, no cotidiano, tentamos manter escondido.

Do ponto de vista psicanalítico, vale observar três camadas presentes naquele ato.

A primeira é a do afeto desorganizado. A rivalidade futebolística desperta paixões primitivas. Para Freud, esse tipo de fenômeno coletivo libera o sujeito de parte de sua responsabilidade pessoal. A massa autoriza impulsos mais regredidos, que pertencem a um registro infantil. No estádio, muitos se sentem autorizados a expressar agressividade com menos filtro. A situação extrema, no entanto, revela conteúdos que sempre estiveram ali, apesar de silenciosos.

A segunda camada é o uso do outro como depósito do próprio mal-estar. O que chamamos de racismo ou xenofobia, quando observado pela lente clínica, mostra um mecanismo de projeção. O sujeito descarrega no outro aquilo que não tolera em si mesmo. A torcida rival vira o alvo no qual a pessoa coloca tudo que recusa dentro de si: sua sensação de inferioridade, sua frustração, sua raiva acumulada. Quando alguém ataca a cor, a origem, a classe social de outra pessoa, não está falando do outro, mas de si.

A terceira camada é a da identidade frágil, sustentada por pequenas superioridades imaginárias. Quando se faz referência depreciativa à cor da pele ou ao lugar de origem de um grupo, o que vemos é o ego tentando se sustentar em uma posição de poder ilusória. Lacan fala de como o sujeito busca um ponto externo onde possa se apoiar para sentir-se maior do que é. Esse ponto pode ser o time, o grupo social, a cidade. Quando essa sustentação falha, a agressão aparece para restaurar, ainda que de modo ilusório, um sentimento de importância.

Tudo isso, colocado dentro do contexto atual, revela algo maior: a sociedade brasileira vive um processo intenso de fragmentação simbólica. Os laços enfraquecidos tornam as pessoas mais propensas a descarregar suas tensões em alvos rápidos. O estádio vira uma válvula de escape. Só que essa descarga tem consequências reais, fere pessoas concretas e perpetua uma cadeia de violências simbólicas que atravessa gerações.

Aqui também existe um ponto essencial. Quando os clubes, as instituições e até as empresas envolvidas reagem, surge uma oportunidade de responsabilização subjetiva. Não se trata apenas de punir, mas de indicar que cada ato tem um lugar no campo social e que não há mais espaço para esse tipo de repetição cega. A responsabilização não cura, mas inaugura a possibilidade de elaborar.

O episódio entre Avaí e Remo não é apenas um caso isolado. É o retrato daquilo que todos nós precisamos olhar com mais coragem. O racismo e a xenofobia não nascem no estádio. Eles apenas encontram ali um palco onde podem se expressar sem disfarces. Para transformar essa realidade, não basta campanhas. É preciso trabalhar o sujeito. É preciso perguntar o que cada um carrega e por que, diante do outro, sente que precisa diminuir alguém para sustentar alguma sensação interna de valor.

A psicanálise nos lembra que aquilo que rejeitamos no outro é justamente o que nos habita. E só quando encaramos isso com honestidade é que podemos começar a interromper ciclos de violência travestidos de paixão esportiva.

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