Carência: O vazio que você tenta preencher e nem sabe por quê

 A carência é um sentimento humano universal. Todos, em algum momento da vida, experimentam a sensação de falta, seja de amor, atenção, reconhecimento ou cuidado. Mas por que algumas pessoas sentem essa ausência de maneira tão profunda a ponto de serem dominadas por ela? E mais importante: como é possível ressignificar esse desamparo que alimenta a carência?



A psicanálise nos oferece uma lente potente para compreender a raiz desse sentimento.

A origem do desamparo

Na teoria psicanalítica de Freud, o ser humano nasce em uma condição de hilflosigkeit, termo alemão que pode ser traduzido como “desamparo” ou “impotência”. O bebê humano depende totalmente do outro para sobreviver. Esse desamparo primordial marca profundamente o psiquismo.

Quando o outro (geralmente a mãe ou o cuidador) responde às necessidades básicas da criança (fome, frio, dor) forma-se um vínculo que dá ao bebê a sensação de segurança e acolhimento. Porém, mesmo quando bem cuidado, o bebê experimenta pequenas frustrações. São essas frustrações que, segundo a psicanálise, inauguram o desejo. Desejamos porque não temos tudo, o tempo todo.

Carência: desejo ou buraco?

É importante distinguir carência de desejo. O desejo é motor da vida, impulso criativo e estruturante. Já a carência crônica é o eco de um desamparo não simbolizado. É a tentativa inconsciente de preencher um vazio que não foi elaborado.

A carência excessiva pode indicar que, em algum momento da infância, houve uma falha significativa na experiência de acolhimento. Não se trata de culpar os pais ou cuidadores, mas de compreender que, para aquele sujeito, algo essencial foi sentido como ausente ou insuficiente.

Essa “falta” pode se cristalizar no inconsciente e se manifestar na vida adulta por meio de relacionamentos dependentes, necessidade constante de aprovação, medo de rejeição ou dificuldade de estar sozinho.

O papel do outro e a ilusão de completude

Outro conceito importante é o da ilusão de completude. Muitas vezes, buscamos no outro aquilo que acreditamos que nos falta. Idealizamos relações, parceiros, amizades ou até a própria vida profissional como se, ao alcançar determinada coisa ou pessoa, finalmente estaríamos completos.

Essa busca incessante por algo externo que nos “salve” é reflexo do desamparo inicial mal elaborado. A psicanálise nos convida a olhar para esse vazio, não como algo a ser preenchido, mas a ser compreendido e simbolizado.

Ressignificando o desamparo

A ressignificação do desamparo não se dá pela negação da carência, mas por sua elaboração. Isso implica em:

Reconhecer a falta como parte constitutiva do sujeito: Somos seres faltantes. A completude é uma fantasia. Aceitar isso pode ser libertador.

Investir em um processo de autoconhecimento: A análise nos permite escutar nossos desejos mais profundos, compreender as repetições inconscientes e construir uma narrativa mais coerente sobre nossa história.

Transferir a fonte de validação para si mesmo: Quando o sujeito começa a se escutar, a reconhecer suas necessidades e limites, deixa de buscar no outro a confirmação de seu valor.

Transformar o vazio em espaço criativo: O que fazemos com o que nos falta pode se tornar fonte de potência. Muitos artistas, pensadores e criadores canalizaram suas carências em obras de profundo valor humano.

A carência é um sintoma. Ela aponta para um desamparo mais profundo, que pede escuta e elaboração. A psicanálise não promete eliminar o vazio, mas ajudar o sujeito a lidar com ele de forma mais autêntica e menos sofrida. Ao acolher a própria história e se apropriar de seus afetos, é possível transformar a carência em caminho de crescimento, autonomia e desejo vivo.

Se você sente que a carência tem tomado conta da sua vida, talvez seja hora de se ouvir mais profundamente. A escuta psicanalítica pode ser um ponto de partida para ressignificar esse desamparo e construir uma nova relação consigo mesmo.

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