Quando começamos a nos cobrar tanto? Entenda as origens da autocrítica

A criança que mora em nós ainda se sente exposta

Desde cedo, somos apresentados ao julgamento. Não o julgamento severo e direto, mas aquele silencioso, que se insinua nos pequenos gestos do cotidiano. Quando uma criança começa a contar quantas cadeiras a separam da sua vez de ler, o que está em jogo não é apenas a leitura. O que ela deseja, mesmo sem saber nomear, é não passar vergonha. Ela quer pertencer. Quer garantir que, ao abrir a boca, saiam palavras exatas, sem tropeços, sem erros. Essa criança, que em sua inocência tenta prever o futuro para não ser pega de surpresa, é o início da nossa história com a autocrítica.


No campo da psicanálise, falamos de um sujeito atravessado por discursos. Um deles é o olhar do Outro, esse olhar simbólico que nos forma, nos molda, nos organiza. Desde pequenos, aprendemos que há um lugar de destaque reservado para quem acerta, para quem não falha, para quem executa tudo de forma exemplar. E assim, sem que ninguém diga diretamente, nos tornamos especialistas em prever nossas falhas para tentar evitá-las. A lógica é simples: se eu errar, posso ser rejeitado. Se eu for perfeito, talvez me amem mais.

O ideal do eu e a tirania da perfeição

Freud nos apresentou o conceito do ideal do eu, essa imagem internalizada de perfeição que construímos com base nas exigências externas. Esse ideal é, muitas vezes, cruel. Ele não admite tropeços, não tolera pausas, não compreende limitações. Quando uma criança tenta se preparar para ler perfeitamente, o que ela está tentando fazer é alcançar esse ideal. Ela imagina que, se tudo correr bem, ela será aceita, admirada, reconhecida.

O problema é que esse ideal nunca é plenamente atingido. Sempre haverá um detalhe fora do lugar, uma entonação que poderia ter sido melhor, uma palavra esquecida. E aí nasce o ciclo da frustração. Quanto mais tentamos alcançar o ideal, mais nos frustramos por não conseguir. A cobrança cresce. E a criança, agora adulta, continua se sentindo insuficiente, mesmo quando tudo ao redor diz que ela está indo bem.

O supereu e a voz que não cala

Na teoria freudiana, o supereu é aquela instância psíquica que carrega as vozes internalizadas de autoridade. É ele que nos diz o que é certo e errado, o que devemos fazer, o que não podemos sentir. Com o tempo, essa voz se torna tão familiar que nem a questionamos. Ela apenas fala, com firmeza, nos dizendo que deveríamos ter feito melhor, que foi pouco, que não é suficiente. Muitas vezes, é essa voz que nos impede de descansar, de celebrar uma conquista, de aceitar que errar faz parte do processo.

Essa voz, que começou como um esforço infantil para agradar e se proteger, se transforma em um carrasco interno. Ela não reconhece contextos. Não respeita cansaços. Não acolhe fragilidades. Ela exige. E nós obedecemos, como se ainda estivéssemos na fila da leitura, tentando prever a nossa vez para não errar.

O desejo de ser amado por meio do desempenho

Por trás da cobrança, existe um desejo. E esse desejo é profundamente humano: o de ser amado. A criança que queria ler perfeitamente não buscava apenas aprovação escolar. Ela queria ser vista com carinho, receber um sorriso, sentir que era boa o suficiente. Isso não muda com a idade. O adulto que se esforça para ser impecável ainda está tentando conquistar o amor por meio do desempenho. Ele acredita, muitas vezes sem perceber, que só será digno de afeto se entregar resultados perfeitos.

Esse é um dos grandes sofrimentos contemporâneos. Confundimos amor com performance. E isso gera relações desgastadas, vínculos condicionais, sentimentos de inadequação. Afinal, quando o afeto está atrelado ao que produzimos, deixamos de nos sentir amados pelo que somos.

A importância de escutar a criança ferida

Um dos caminhos mais profundos de transformação é voltar o olhar para essa criança interior que, lá atrás, aprendeu que precisava ser perfeita para ser aceita. Não se trata de negar o que ela viveu, mas de escutá-la com compaixão. De dizer a ela que não precisa mais se esconder, nem prever o parágrafo, nem acertar sempre. Que hoje há espaço para a falha, para o erro, para o tropeço.

Quando acolhemos essa parte nossa que carrega medo, vergonha e insegurança, começamos a desmontar a estrutura rígida da cobrança. Podemos, então, substituir a exigência por cuidado. E no lugar do julgamento, oferecer escuta. É nesse gesto de escuta interna que a cura começa.

A função do analista e o atravessamento do sintoma

Na clínica psicanalítica, vemos diariamente sujeitos presos a esse imperativo de perfeição. A análise oferece um espaço onde a fala pode circular sem o peso da cobrança. Um lugar onde o sujeito pode se permitir errar, esquecer, se contradizer. E é justamente nessa liberdade que ele reencontra sua potência.

O sintoma da autocrítica constante, quando bem escutado, revela muito mais do que um simples hábito. Ele fala de uma história, de uma tentativa de sobrevivência psíquica, de uma estratégia que um dia fez sentido. Mas que agora, na vida adulta, talvez esteja mais atrapalhando do que protegendo.

Desenvolver uma ética do cuidado com o eu

Talvez não consigamos silenciar de vez a voz interna que nos cobra. Mas podemos aprender a conviver com ela sem nos submeter totalmente. Podemos desenvolver uma ética do cuidado consigo mesmo. Isso significa aceitar nossas limitações, reconhecer nossos esforços, permitir-se errar sem desmoronar.

Ser gentil consigo mesmo não é autoindulgência. É maturidade psíquica. É reconhecer que somos falhos, como todos os outros, e que nosso valor não depende de uma execução perfeita. É sair do lugar de vigilância e entrar no território da autenticidade.

Conclusão: do controle à confiança

A criança que calculava sua vez de ler queria ter controle para não ser surpreendida. O adulto que se cobra quer a mesma coisa: evitar o inesperado, impedir a exposição, garantir a aceitação. Mas viver é o oposto do controle. Viver é confiar. É aceitar que não temos todas as respostas, que vamos errar, que vamos aprender com isso.

A cura da autocrítica não está em ignorar nossas falhas, mas em permitir que elas existam sem que isso abale nossa identidade. Podemos continuar crescendo, sim, mas a partir de um lugar mais amoroso, mais leve, mais humano.

E talvez, um dia, possamos simplesmente abrir um livro, ler em voz alta, errar uma palavra... e rir disso.

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