Carta Comentada: A filha que nunca deu trabalho, mas hoje está exausta

Carta da leitora anônima


“Eu sou a filha que nunca deu trabalho. Sempre tirei boas notas, obedeci, me calei, fui madura demais, cedo demais. Hoje, sou aquela que não tem paciência, que não consegue ter intimidade, que sente vergonha de pedir ajuda. Me sinto cansada o tempo todo, como se o mundo fosse meu para carregar. Não sei ser frágil. Não sei parar. Acho que, se eu parar, tudo desaba. Vivo sobrecarregada. Eu só queria ser cuidada, mas não sei nem como pedir isso. Parece fraqueza. Eu só sei ser forte. O tempo todo.”

Quando a força cansa e o silêncio pesa, uma carta pode ser o começo da cura.

Comentário psicanalítico

É muito comum ouvirmos histórias assim no consultório e nos corredores da vida. Histórias de quem cresceu sendo a filha que nunca deu trabalho, aquela criança que se moldou às expectativas da casa, que foi elogiada por sua responsabilidade precoce, mas que, no fundo, não teve espaço para viver plenamente sua infância.

Esse tipo de trajetória deixa marcas. À primeira vista, parece uma história de sucesso, mas, quando olhamos com mais profundidade, vemos o preço emocional disso tudo. Essa filha crescida, agora mulher, tornou-se alguém que não tolera repetir algo duas vezes porque aprendeu que falhar ou esquecer causaria problemas. Ela não consegue desenvolver intimidade porque isso exigiria vulnerabilidade – algo que nunca foi permitido. Ela não sabe pedir ajuda porque cresceu ouvindo elogios por "dar conta de tudo sozinha". Mas hoje, ela não dá mais conta. Está sobrecarregada, esgotada, e cansada.

Na psicanálise, enxergamos esses sintomas como forma de expressão de um desamparo silencioso. Uma parte sua grita por acolhimento, mas a outra aprendeu que demonstrar necessidade é sinônimo de fraqueza. E esse conflito interno gera o sofrimento psíquico.

Pedir ajuda não é fraqueza. É maturidade.

Quando a pessoa acredita que precisa ser forte o tempo todo, ela reprime suas angústias, desejos e até seus limites. Com o tempo, isso gera sintomas físicos e emocionais: crises de ansiedade, esgotamento, insônia, irritabilidade e até doenças psicossomáticas. É como se o corpo começasse a dizer aquilo que a boca não sabe ou não consegue verbalizar.

Ser forte o tempo todo não é um dom, é um sintoma. É o sinal de que, em algum momento da vida, não houve espaço para ser frágil, para chorar, para falhar. Ser essa “filha perfeita” criou uma identidade que hoje aprisiona.

E qual é a saída?

A saída começa com o reconhecimento: algo não está bem. Depois, vem o movimento de romper com essa imagem idealizada de força. Aprender a dizer “não posso”, “não quero”, “não aguento mais”. Buscar ajuda terapêutica é um passo valioso. É nesse espaço que a gente aprende a olhar com compaixão para a própria história, a se acolher e a dar novos significados aos velhos padrões.

Desenvolver a capacidade de ter intimidade, com os outros e consigo mesma, não é simples. Mas é possível. Intimidade não começa com o outro, começa dentro: quando você se permite olhar para suas próprias feridas sem julgamento, com cuidado.

Sobrecarregada, cansada, tentando ser forte o tempo todo: talvez você não perceba, mas já é hora de pedir colo, de baixar as armas, de cuidar de si.


Se você se identificou com essa carta e sente que também carrega o peso de ser a filha que nunca deu trabalho, mas que hoje vive exausta, com dificuldade de se abrir e pedir ajuda, escreva para mim. Sua história pode ser a voz que outras pessoas precisam ouvir.

Envie sua carta para o e-mail: odivaaberto@gmail.com
Seu desabafo pode tocar corações, abrir caminhos e mostrar que você não está sozinha.

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